quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Quando o absurdo não é o mais estranho

Véspera de Natal. Saio de casa da minha mãe julgando-a mesmo atrás de mim. Ela volta atrás para ir buscar algo esquecido e vou descendo. Entro no carro e espero. Espero mais um bocado, até que estranho. Volto ao prédio e encontro-a mais a D. Helena- a vizinha do terceiro andar. Com 92 anos está caída entre o primeiro andar e o piso térreo. Corro para avisar a filha que espera no carro mal estacionado, com o motor a trabalhar. Volto em passo acelerado para fazer não sei bem o quê. Tenho medo de lhe tocar e magoar ainda mais mas sigo a vontade da filha. Pego-a ao colo como a um meu bebé. Uma pena. Sinto os seus ossos e o corpo contraído. Pouso-a no chão e apoio-a sobre mim e sobre a minha mãe. Ajudamo-la a colocar-se de pé e a descer o lance que faltava. Tentamos que caminhe sozinha porque assim nos é pedido. Não se aguenta. O desiquilibrio do corpo assemelha-se à desorientação do pensamento. Ainda assim, vai-me dizendo que está muito feliz por me rever, mesmo sob aquelas circunstâncias. A filha nada diz. Conduz as nossas ações e conduz mais tarde o carro ainda quente. Ficamos assim- eu e a minha mãe- naquele silêncio. Na censura muda perante as ações invisíveis e pela apatia demonstrada. Ficamos assim- eu e a minha mãe- num similar desconcerto, com preocupação pelas dores vindouras, pelos ferimentos possíveis, pela frieza que não vem do rigoroso inverno. Ficamos assim e continuamos. 
Quando hoje entrei em casa da minha mãe, quase não lhe disse olá. Perguntei pela D. Helena que me relatou vezes sem fim, as vezes que me pegou ao colo {nunca pensei devolver-lhe o gesto}. Encolheu-me os ombros. Não a viu, nem sempre a vê. Nada sabe. Ficámos assim- eu e a minha mãe- até que tocou a campainha. Era a outra vizinha, a Saudade. Vinha com uma incumbência, sob um sorriso nervoso. A D. Helena havia transmitido a sua indignação. Tinha caído, era certo, mas, nas suas palavras, carregava sacos com prendas de Natal. Sacos que desapareceram. Sacos que foram roubados à sua existência. Sacos que fazem, agora, a felicidade de quem por ela havia passado, ainda caída no chão. E ficámos assim- eu e a minha mãe- com sacos imaginários nas mãos, sorrindo pelo "mal" da D. Helena. O estranho é tudo o resto. 

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