domingo, 30 de outubro de 2011

O fim da praceta

Há dias em que as saudades da minha infância/adolescência/juventude se fazem sentir.
Tudo se resume a uma palavra: praceta. Parece algo simples ou insignificante mas não é. De todo! Acredito mesmo que o desaparecimento deste conceito, mudou radicalmente o modo como as crianças,  adolescentes e jovens têm vindo a crescer e a formar-se como pessoas.

Praceta era sinal de liberdade, de desafios, de brincadeira, de muito disparate mas, simultaneamente, de responsabilização, de amadurecimento... era uma oportunidade. A oportunidade de crescermos entre os nossos pares, de criarmos laços. Se há coisa que me recordo é de dizer aos meus pais, em jeito de grito, "vou para a rua". Ouvia, ao longe, um "não venhas tarde"! E assim se passavam finais de tarde, noites e quase três meses de férias escolares. Haviam umas quantas vizinhas que passavam os dias espreitando-nos pela janela, encarnando a figura de vigilantes. E sob a mesma responsabilidade, as crianças mais velhas cuidavam das mais pequenas. Lembro-me de pegar ao colo o Rodrigo. Ele tinha 4/5 anos e morava no 5º andar. Quando queria ir para casa, pegavamos ao colo o seu corpito moreno e ele tocava à campainha. (Hoje o Rodrigo é jogador profissional de futebol, tem 1m80 e dois filhos...).
Lembro-me de vender banda desenhada e brinquedos no passeio, recordo-me de "pedir emprestado" bolicaos e gelados na mercearia e do sorriso da dona que fingia não ver... Jogar aos polícias e ladrões riscando a estrada com caminhos de giz.  Não conto as marcas que ainda hoje tenho nas canelas fruto das quedas que dei de bicicleta quando percorria o circuito do estádio nacional. A adrenalina sentida ao descer a Carris em carrinho de rolamentos. E a fruta? Tanta fruta...tanta árvore...tanta corrida que demos! Tive uma infância muito, muito feliz. E uma adolescência que seguiu os mesmos passos, face a esta oportunidade de sair debaixo do nariz dos meus pais. A juventude... essa, foi ainda mais... diria interessante. Não poderei nunca esquecer quando, com a boca cheia de farinha, dizíamos aos moços entregadores de pizza que não tinhamos visto quem é que tinha tirado o que tinha ficado na moto... Os namoros e namoricos, as festas - ai as festas! Recordo-me especialmente de uma. Tinha 15 anos e o combinado era uma festa pijama de meninas. Nem sei como os nossos pais nos permitiram... (acho mesmo que supliquei). Casa vazia e sacos cama... era o que nos bastava. Ou não!  As fotos que ainda hoje guardo mostram-nos a lavar a cabeça no lava loiça da cozinha agarradas a  garrafas de moscatel. Obviamente que foi daquelas noites memoráveis. Bastou a mãe da amiga que emprestou a casa aparecer e encontrar dois rapazes dentro de um armário para nunca mais ninguém esquecer este dia. 
Não tenho energia para descrever os episódios que vivi. Alguns não poderia nem sequer aqui contar. Alguns já nem devia ter contado...

Sempre na praceta, sempre com a amizade, união e protecção de um grupo que até hoje se mantém. Com chuva, calor, com testes ou outros constrangimentos, em férias ou em tempo escolar, as tardes, os finais de dia e as noites eram passadas em grupo. Assim crescemos. Assim, aprendemos a escolher o caminho certo ao invés do errado... às custas, na maior parte das vezes, da dureza das consequências dos nossos actos.
Hoje, os meus filhos brincam com os filhos desses mesmos amigos com quem tantas histórias partilhei. Mas as brincadeiras são diferentes.
Estão sob a nossa asa e, apesar da segurança, apesar do confortável que é esta postura que hoje em dia impera, não sei se é o melhor. Não sei se não preferia que pisassem uns quantos riscos, que cometessem umas pequenas loucuras... iriam saber o que era um amigo voltar para trás. Iriam saber o que é um amigo dizer que foi ele quando fomos nós. Creio que com o "fim da praceta", o sentimento de pertença mais dificilmente é alcançado. Sentido verdadeiramente.

E eu sei porque é que estas memórias foram reavivadas hoje.
Ontem saí à noite. Ao contrário da maior parte das histórias de juventude, esta não foi uma prática comum no nosso grupo. Sempre optámos por outro tipo de diversão. Agora em adultos, esta hipótese de vez enquando é seleccionada. Mas, a idade já se faz sentir (!!!). A música já parece muito alta, a luz confunde e as lentes de contacto, secas de tanto fumo, acabam por potenciar o nosso sono. Ontem já não dançava. O meu corpo reagia ao movimento dos outros corpos. Quando acordei hoje, esta sensação ainda não tinha desaparecido. Quando chegaram os meus filhos com a energia que eu não tinha, questionando se íamos andar de bicicleta, jogar à bola ou qualquer outra actividade envolvendo movimento, eu e o meu marido, partilhando olhos à Garfield, suplicámos em silêncio. Desejámos que ainda se vivesse na era da praceta e eles nos dissessem "vamos para a rua". Eu responderia, de bom grado, "não venham tarde"! Mas esses tempos acabaram. E é a nós e às nossas casas altamente equipadas que cabe o papel de preencher esse vazio.

E quando alguém me dizia há dias "vocês vivem demasiado para os vossos filhos", eu apetecia-me devolver a resposta com uma pergunta "mas existem alternativas?"

Ainda hei-de responder.

11 comentários:

  1. Também tive uma praceta, uma rua e uma árvore. A praceta e a rua ainda existem, mas já não se vêem crianças a brincar, estão dentro do infantário. A árvore mataram-na e no lugar onde fazíamos piqueniques e jogos existem prédios. A nossa árvore era uma Figueira.

    No tempo em que podíamos, com toda a segurança e liberdade, brincar na rua, andar de bicicleta e carrinhos de rolamentos e mais o que nos passasse na cabeça, havia sempre alguém em nossa casa, a mãe, uma avó, uma tia velhinha que acudia aos nossos arranhões, porque as brigas, essas eramos nós que as resolviamos.

    As alternativas para as crianças e jovens só surgem nas férias grandes, com as colónias de férias e para quem tem o privilégio de poder ir para a aldeia dos avós e bisavós.

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  2. É verdade, Helena! Mas não é a mesma coisa. As aventuras numa colónia de férias não se comparam com aquilo que se experienciava na liberdade de uma praceta segura. Onde todos nos conheciam e ainda conhecem pelo nome. A minha praceta ainda existe. As paredes dos prédios ainda têm os nossos nomes escritos em cantinhos. Ainda olho para os seus contornos e sei de cor onde caí de mota, onde joguei aos polícias e ladrões, onde me escondi numa camioneta de fruta quando jogava às escondidas e quando essa mesma camioneta arrancou. Ainda me lembro dos cantinhos onde namorei e não ocnsigo esquecer os "ferros" (corrimões) onde estavamos sentados horas a frio (fizesse chuva ou sol) e onde falavamos e partilhavamos aquilo que hoje se faz virtualmente. Não digo que é pior. Apenas tenho pena que os meus filhos não vivam aquilo que eu vivi...com uma liberdade que não existe hoje. Enfim... Beijinhos e obrigada!

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  3. "Ou não!"
    As pracetas são as mesmas, nos mesmos locais, ali mesmo á porta da nossa casa, mas agora apenas cheias de gente nenhuma, e arrumadinhas com carros em cima dos passeios.
    E as janelas? Essas agora só se abrem para deitar fora as migalhas do almoço, já ninguém vem ver quem chega, quem parte ou quem está, já ninguém sequer se abeira de uma janela para ver porque toca o alarme do carro do vizinho.
    As pracetas são as mesmas, mas agora as crianças são diferentes, são as nossas! As nossas e as do vizinho da frente que eu nem sequer conheço. Nem conheço e evito até entrar no mesmo elevador que ele, tenho medo que ele me diga que ontem fiz algum barulho fora de horas.
    As pracetas são as mesmas, a praceta está lá como sempre esteve, á espera de uma bola de futebol, das rodas de uma bicicleta, e das crianças. Das mesmas crianças que teimamos guardar debaixo das nossas assas, com algumas razões! Guardamo-las para que não façam as mesmas asneiras gostosas que nós fizemos, para que elas não sintam a dureza do alcatrão! No fundo guardamo-las para que elas não façam manchete de um qualquer telejornal!
    Porra! Afinal nós é que mudamos, nós é que estamos a conquistar um mundo só nosso, o nosso mundo é cada vez mais aquele pequeno espaço que pagamos todos os messes ao banco, o nosso mundo é cada vez mais apenas os metros quadrados da nossa casa, agora com novas janelas, as nossas janelas para a rua são plasmas e mais plasma por onde vimos o mundo da forma que os outros querem que seja visto!
    Agora já não há pracetas!

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  4. Pedro, bem podes bater palmas. Afinal, recebemos uns quantos adultos lá em casa que acusavam a tua pessoa de alguns incidentes do exterior... e mais não digo...

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  5. identifiquei-me tanto com este texto... e penso muitas vezes se não estamos a limitar os nossos filhos, ao protegê-los demasiado. mas como fazer diferente? alguém tem coragem de os mandar sozinhos para a rua nos dias que correm?...

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  6. Pois...aí reside a questão. Somos movidos pelo medo. Mas sejamos francos. Os fundamentos do nosso medo sempre existiram. A visibilidade dos problemas é que potenciou o nosso sentimento de insegurança...

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  7. Parcetas, estou a ver que todos nós nas nossas infancias tivemos uma.
    Eu também tive a minha, o que me lembro dela?dias e dias e algumas noites passadas com os vizinhos de vários prédios, pois na minha infancia, todos os prédios há volta da praceta tinha muita "muidagem", nas brindadeiras, uns a jogar a bola ( rapazes) e outras a brincar ao elastico (as moças), nas épocas festivas, como o são joão, faziamos uma bela fogueirinha, e lá passavamos a noite a dar saltos.
    essa praceta nos dias de hoje é um espaço com parque de estacionamento e uma ou outra arvore da minha infancia.

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  8. MIga...quase me fizeste chorar. Que nostalgia. Que saudades!
    Não esquecer os episódios de "arrecadações que viravam casa de espiritos" hahahah . Uuuuuuuuuuuu tenham medo, muito medo!!!

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  9. Bela!! Estava a estranhar o teu silêncio... as arrecadações viraram muita coisa... :)
    As saudades que eu tenho de andar de bicicleta...

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